Preconceito por idade abordado na novela Um Lugar ao Sol, da TV Globo, não é uma novidade, mas continua sendo necessário porque contribuiu para o debate do tema importante e cada vez mais presente na sociedade
Você já ouviu falar sobre o etarismo? Não? Pois deveria. É um termo novo e que cada vez mais vem sendo citado pelas pessoas, que hoje em dia conseguem identificar comentários e comportamentos de preconceito contra pessoas idosas na sociedade.
Com o envelhecimento da população aumentando, é preciso se preocupar com essa pauta tão importante, já que provavelmente você já presenciou, talvez tenha praticado, foi vítima do etarismo e pode até não saber.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019 o número de idosos no Brasil chegou a 32,9 milhões de pessoas. Diversos fatores acompanham esse crescimento, como o preconceito com essa população, que não se limita apenas às pessoas com mais idade, sendo possível perceber que ele começa entre os 45 aos 59 anos, segundo a classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS). A partir disso, considera-se idosa qualquer pessoa com 60 anos ou mais.
Os dados ainda mostram que a tendência de envelhecimento da população vem se mantendo e o número de pessoas com mais de 60 anos no país é superior ao de crianças com até 9 anos de idade.
Estudos internacionais também mostram os mesmos indicadores. Segundo um relatório elaborado pela OMS chamado “Ageism”, uma em cada duas pessoas no mundo vivenciou discriminações que pioraram de alguma forma a saúde física e mental de idosos.
Esse relatório global sobre o preconceito etário embasou uma campanha realizada pela OMS para combater estereótipos e engajar na discussão acerca do assunto. Para isso, foi realizado um levantamento com mais de 80 mil pessoas, em 57 mil países.
Voltando ao Brasil, os dados evidenciam que o etarismo começa antes das pessoas chegarem à chamada terceira idade, pois 16,8% dos brasileiros com mais de 50 anos já se sentiram vítimas de algum tipo de discriminação por seu envelhecimento.
Mas afinal, o que é etarismo?
O etarismo nada mais é que um termo novo criado para nomear um velho preconceito, motivado pela idade, seja ela qual for. O termo “etarismo” tem origem na palavra “ageísmo”, do inglês “ageism”. A expressão foi cunhada pelo pesquisador que primeiro abordou o tema nos Estados Unidos, o psiquiatra Robert Butler, em 1969, com base na palavra “age” (idade), para descrever o preconceito em relação a pessoas mais velhas.
A psicóloga e pesquisadora Fran Winandy, atuante na área de Diversidade Etária e Etarismo, explica o termo em seu livro Etarismo, um Novo Nome para um Velho Preconceito, lançado em dezembro de 2021. No livro lemos o seguinte:
“Etarismo é o preconceito por idade. O ato de discriminar uma pessoa ou um grupo de pessoas em função de sua idade cronológica. Alguns chamam esse preconceito de ageísmo; outros, de idadismo. Preconceitos etários, preconceito por idade ou velhofobia, quando o preconceito é específico contra idosos. Eu gosto de etarismo por sua abrangência (jovens e idosos) e suas raízes decorrentes do adjetivo etário - que diz respeito à idade ou que é característico da idade.”
Como ele se manifesta?
É fato que o envelhecimento é um movimento natural da vida, e é nesse processo que ele acontece. Mesmo que crianças e jovens também sejam suscetíveis a ele, é nos mais velhos que o impacto é maior.
Ele se manifesta de diversas formas, que podem ser identificadas através de comentários ou brincadeiras que parecem não ofender, mas ofendem. As manifestações deste preconceito não se restringem apenas a um setor da sociedade. Pode ser visto no meio familiar, no mercado de trabalho, assim como em qualquer ambiente público.
O discurso que dissemina a ideia de inutilidade, de que a idade e a experiência são empecilhos para inúmeras coisas ou, até mesmo, aquele elogio aparentemente inocente, pode ser, sim, considerado um caso de etarismo.
Exemplo de frases consideradas etaristas
Depoimentos de pessoas que já sofreram etarismo
A telenovela como reflexo da sociedade
Quando, literalmente, olhamos para o etarismo na teledramaturgia brasileira, levando em consideração a premissa de que as novelas são um reflexo da sociedade, é possível reconhecer que há muitos anos o tema vem sendo tratado, mesmo que de formas diferentes.
Historicamente, as novelas só começaram a abordar pautas sociais com mais efetividade após o fim da Ditadura Militar (1964-1985), que, durante 21 anos, controlou e censurou todos os meios de comunicação, sobretudo aquelas obras que eram consideradas uma afronta a moral e aos bons costumes. Talvez por isso ela tenha ganhado fama de um produto ruim, descredibilizado, até mesmo um “mau exemplo”.
“Ainda hoje a telenovela tem um papel fundamental por ser um agente que propicia a abertura de um espaço na esfera pública para o debate das pautas sociais. Então, sim, ela ainda propicia a abertura para discussão de certos temas, mesmo quando está direcionada para um público menor, ainda chega a milhões de pessoas.”
Lucas Martins Néia, Doutor em Ciências da Comunicação, ECA-USP.
Era comum nessas novelas as pessoas mais velhas serem vistas apenas como um avô ou uma avó, ou também como uma pessoa inválida, cansada ou doente, sem serventia para a sociedade.
Um dos primeiros exemplos de abordagem do etarismo, mas velado, aconteceu na novela Vale Tudo (1988), escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères na TV Globo, que retratou um Brasil ainda tão atual. Nela, o personagem Bartolomeu (Cláudio Corrêa e Castro), um grande redator de jornal, enfrenta dificuldades para voltar ao mercado de trabalho, muito por conta da sua idade e também porque não consegue se adaptar às tecnologias, como computadores.
Em Explode Coração (1995), outra novela a abordar pautas sociais como o desaparecimento de crianças e a popularização da internet, teve a marca registrada da autora Gloria Perez que, desde que iniciou sua carreira na televisão, insere uma ou mais ações de merchandising social, em geral bem sucedidas e elogiadas pela crítica e pelo público.
Na obra, temos um exemplo de etarismo no meio familiar através do personagem Augusto (Elias Gleizer), um típico homem aposentado, que decide prestar vestibular na terceira idade. Enquanto é criticado pela família, na universidade em que estuda é querido pelos seus colegas mais jovens, que o tem como exemplo.
Conhecido pelas suas novelas no estilo de crônicas cotidianas, Manoel Carlos também tem uma grande contribuição para o debate do etarismo nas novelas brasileiras. Embora seja considerado elitista, o autor conseguiu emplacar pautas sociais memoráveis, além de investir em personagens mais maduros.
Isso aconteceu em Laços de Família (2000). O novelista ousou ao colocar uma mulher madura se relacionando com um homem mais novo. Helena (Vera Fischer), uma mulher independente, com dois filhos criados e avó, se envolve com Edu (Reynaldo Gianecchini), um médico recém formado que tem metade da sua idade.
O relacionamento é alvo de comentários etaristas, principalmente por sua nora Clara (Regiane Alves), que insinua ser a relação “uma coisa ridícula”. Sua filha Camila (Carolina Dieckmann), apaixonada pelo mesmo homem que a mãe, disputa Edu, que cede. Ocorre a insinuação de que ele preferiu a mulher mais nova porque teria mais a oferecer.
Mas o preconceito mesmo vem de Alma (Marieta Severo), que despeja o seu preconceito contra a relação do sobrinho com Helena. Em vários momentos, ela afirma que Helena é velha demais para Edu, e questiona como seria a velhice dos dois juntos, alegando que seu sobrinho perderia sua juventude estando ao lado dela. O comportamento envolto em machismo poderia ser considerado até mesmo hipócrita, pois a mesma Alma mantinha casamento com um homem mais novo, seu quarto marido.
A novela como impulsionamento social
Na novela seguinte de Manoel Carlos, Mulheres Apaixonadas (2003), a produção seria um dos seus melhores trabalhos, com grande quantidade de temas sociais abordados, como homossexualidade, alcoolismo, violência doméstica e os maus tratos contra idosos.
Este tema foi explicitamente representado pelos personagens Flora (Carmen Silva) e Leopoldo (Osvaldo Louzada), constantemente agredidos psicológica e fisicamente por sua neta Dóris (Regiane Alves), que os considerava um problema em sua vida. Através dos personagens, eram tratadas as dificuldades que as pessoas idosas enfrentam, como andar de ônibus e sofrer violência nas ruas.
As cenas geraram revolta entre o público, que, através da novela, foi conscientizado sobre o tema. No período em que o folhetim foi ao ar, entre fevereiro e agosto de 2003, o deputado Paulo Paim (PT/RS) propôs um Projeto de Lei (PL) sobre o Estatuto do Idoso.
Ele estabelece que nenhum idoso pode ser objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão. Em caso de denúncia, as penas para quem for condenado podem chegar a 12 anos de prisão.
Devido ao grande sucesso, Mulheres Apaixonadas ajudou a acelerar a aprovação do Estatuto do Idoso, que era votado naquele ano. Através da Lei Nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, foi aprovado poucos meses após o fim da produção.
A novela contribuiu para o debate na sociedade e entre as autoridades, que aceleraram o processo de aprovação do Estatuto. Isso fez com que parte do elenco se mobilizasse: os atores Regiane Alves, Daniel Zettel, Carmem Silva e Oswaldo Louzada foram até ao Senado para discursar sobre a pauta.
A Lei Nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, foi aprovada poucos meses após o fim da novela pelo então presidente da república Luís Inácio Lula da Silva (PT).
Esse feito até hoje é motivo de orgulho para a intérprete da vilã Dóris:
"Ninguém sabia bem o melhor jeito de agir nessa situação. Aí na novela apareceu uma adolescente inconformada por ter que dividir o seu espaço falando barbaridades. Todo mundo começou a tocar no assunto, que era velado", relembrou Regiane Alves, em entrevista para a colunista Patrícia Kogut, do jornal O Globo, em 2020.
“Eu não acho que a novela é a única responsável, no caso de Mulheres Apaixonadas (2003), pela aprovação do Estatuto do Idoso, mas é claro que lança luz de um assunto importante, que começa a ser discutido nas diversas esferas da sociedade. Aí você tem um movimento que também cabe a outros setores da sociedade para, então, viabilizar a aprovação de projetos, muito vinculados a essa questão dos Direitos Humanos e a pautas progressistas.”
Lucas Martins Néia - Doutor em Ciências da Comunicação, ECA-USP
Etarismo como humor
Na novela A Favorita (2008), exibida pela TV Globo e recentemente reprisada no Vale a Pena Ver de Novo, é possível ver esse preconceito escancarado através da personagem Flora (Patricia Pillar), que é a grande vilã da história.
Fria e calculista, ela comete inúmeros crimes e suas vítimas são, na maioria, os idosos, por exemplo tecendo comentários depreciativos contra essa população representada na novela.
Os principais alvos são a sogra Irene (Glória Menezes) e o triângulo amoroso que ela se envolve com Gonçalo (Mauro Mendonça) e Copola (Tarcísio Meira). Ainda nessa lista estão Pedro (Genézio de Barros), seu próprio pai e o empregado Silveirinha (Ary Fontoura).
Lá em 2008, essas cenas fizeram o maior sucesso e se tornaram memes na internet, pelo tamanho do absurdo configurado quando Flora humilhava idosos. Mas, recentemente, em sua reprise, algumas dessas cenas foram eliminadas da edição, justamente pelo teor etarista.
Embora a emissora tenha adotado uma mensagem reforçando que o que é apresentado em suas obras reproduz comportamentos e costumes da época, em 2021, isso foi notado pelos fãs que reclamaram nas redes sociais e acabou virando notícia em sites especializados na cobertura de televisão.
Um ponto que chama bastante atenção, além da denúncia do SBT, levando o folhetim a ser reclassificado para maiores de 14 anos, apareceu o argumento de que as falas eram etaristas. A emissora se preocupa com isso hoje atualmente, visto que, recentemente, não tolera mais casos de discriminação, enquanto o tema voltou a ser abordado na principal novela da casa.
Isso é um indício da ideia defendida por essa reportagem, de que a própria novela conseguiu provocar, de maneira positiva, a reflexão das pessoas acerca do tema, inclusive refletido em reportagens que noticiaram os cortes destas cenas citadas acima.
Desde então, outros inúmeros exemplos podem ser apontados nas novelas exibidas no período de 2003 a 2022, que trataram da velhice com diferentes abordagens. Belíssima (2005), é uma delas. A personagem Bia Falcão (Fernanda Montenegro) vivia uma septuagenária com vida sexual ativa, situação exibida pela primeira vez na teledramaturgia brasileira.
O tema da sexualidade na terceira idade foi novamente abordado em Passione (2010), com um triângulo amoroso formado por Brígida Gouveia (Cleyde Yáconis) e Antero (Leonardo Villar). Brígida tem um caso extraconjugal com Diógenes (Elias Gleizer), o motorista da família.
É nessa novela que vemos também abordada a violência contra idosos, agora através da vilã Clara (Mariana Ximenes) contra sua avó Valentina (Daisy Lúcidi). Nesse caso, é importante ressaltar que a violência era justificada pela vilania da personagem, que obrigava suas netas a se prostituir. Ou seja, os sentimentos gerados pelas cenas absurdas exibidas não faziam o público olhar pelo lado social, mas sim sentimental, apoiando esses atos, julgando ser um castigo justo.
O etarismo em Um Lugar ao Sol
Foi em Um Lugar ao Sol que o termo etarismo apareceu pela primeira vez e o preconceito contra pessoas mais velhas, debatido de forma clara, direta e representativa. Através de quatro personagens, foi possível entender melhor como o etarismo age, assim como os dilemas enfrentados pelas mesmas pessoas que também demonstram dificuldades e prazeres da maturidade.
"Acredito que, apesar de todos os problemas, ela foi eficiente, enfrentou diversos fatores que a modificaram, muitos deles por conta da pandemia do Covid-19, mas quanto à discussão desse tema ela foi bem feliz. Aborda uma miscelânea de personagens, que é extremamente importante, pois retira a ideia de que o etarismo está presente só nas faixas mais velhas. A questão é falada de um modo geral", analisa Lucas Martins Néia.
O primeiro deles é o de Rebeca (Andréa Beltrão), uma modelo que não aceita o envelhecimento e, por isso, cada vez menos é chamada para trabalhar. A personagem esconde a idade, faz de tudo para não mostrar suas marcas de expressão, além de ter enraizado o etarismo em sua vida, que a impede de muitas coisas, transformando-a também em uma pessoa etarista.
Toda a complexidade da personagem foi fundamental para retratar a dificuldade de uma pessoa se aceitar e entender que está envelhecendo, sendo esse um movimento natural da vida e que pode, sim, ser positivo.
A personagem é envolvida em vários dilemas, que acabam conflitando com sua filha Cecília (Fernanda Marques), que não aceita que a mãe se comporte como uma “mulher jovem”, quando ela realmente se desconstrói e começa a viver. Rebeca acaba se descobrindo feliz com sua própria idade e se permite encarar o preconceito de frente, principalmente quando se envolve em um relacionamento com um homem mais jovem, o principal motivo do embate entre as duas.
Ela foi fundamental para a discussão que o preconceito etário começa a atingir muito antes da pessoa chegar à idade idosa, evidenciando que é mais forte em relação às mulheres, que são cobradas diante inúmeras pressões machistas e patriarcais.
Nota-se um desenvolvimento aprofundado na personagem e, ao final da novela, ela se sente melhor resolvida. Na trama, Rebeca concede entrevista a um jornalista e cita o etarismo, e profissional de imprensa nitidamente desconhece o termo que define esse tipo de preconceito, tendo como resposta uma longa explicação, que também interliga problemas sociais, como o machismo.
Cena em que Rebeca cita o termo etarismo
Outra personagem que representou o tema foi vó Noca (Marieta Severo), através de uma avó que era um alento para sua neta Lara (Andreia Horta), a quem acolhe e orienta com base em ideias que acredita e que nunca teve oportunidade de viver. Ela baseia-se no seu passado para que a neta não viva o que ela passou. É uma personagem cheia de segredos, mas de muita sabedoria.
Através dela, a mensagem de que a idade não é um impeditivo para ser feliz e sempre recomeçar. Noca sempre foi independente diante de tudo que viveu no passado, não aceita ser uma velha que não faz nada. Por isso, não mede esforços para correr atrás da sua felicidade e a de sua neta. Ela resolve abrir um restaurante e encarar todos os desafios de empreender, além de iniciar um novo amor na terceira idade.
Diferente do principal exemplo citado acima, este núcleo não gerou embates sobre as diferentes idades e serviu como reflexão do quão viva uma pessoa idosa está e sua importância para a sociedade. Sua neta, por sua vez, se preocupava muito com a avó devido essa ânsia de viver, que era tido como algo normal.
Ainda neste núcleo, temos o personagem Aníbal (Reginaldo Faria), que chega na história para formar par romântico com Noca, ou seja, a novela aborda um relacionamento afetivo e sexual na terceira idade, retratando que pessoas nessa faixa etária ainda amam e mantém relações sexuais. Esse tema não é tão novo na teledramaturgia.
A própria autora, Lícia Manzo, havia inserido o tema em A Vida da Gente (2011), na qual Nicette Bruno e Stênio Garcia formavam um casal que inicia o relacionamento na fase idosa da vida.
Além disso, o tema aparece com menos potência em Um Lugar ao Sol com outro personagem, Santiago (José de Abreu), que não aceita que as filhas o tratem como um velho cansado. Ele comanda a rede de supermercados da família com pulso firme, mesmo diante a todos os problemas de saúde que enfrenta, não cogitando a ideia de se aposentar.
É aí que conhece a personagem trainer Érica (Fernanda de Freitas), por quem se apaixona e acaba se casando, fato esse que resulta em momentos de reprovação de uma das filhas, Bárbara (Alinne Moraes), que em hipótese alguma tolera o relacionamento do pai com uma mulher mais nova, argumentando que a mesma só está interessada em seu dinheiro.
“Apesar de todas essas dificuldades, a novela consegue então trazer esse tema de uma maneira interessante e conseguiu se blindar ao não abordar muito a questão do coronavírus, visto na novela anterior, Amor de Mãe. Um Lugar ao Sol conseguiu manter a chama de debater temas importantes, mas que não necessariamente estavam na ordem do dia”.
“Talvez, claro, o etarismo tivesse sido mais eficiente se a novela tivesse sendo escrita enquanto ela ia ao ar e aí a repercussão desses temas na esfera pública fossem também uma espécie de resposta pra autora Lícia Manzo, um apoio para que ela pudesse pensar mais sobre o desenvolvimento e o rumo dos personagens”, analisa Lucas Martins Néia.
Além de impulsionar o debate acerca do tema, com as principais atrizes que interpretam as personagens que abordam o envelhecimento, onde Andrea Beltrão e Marieta Severo se tornaram grandes personalidades engajadas na causa do etarismo.
Com isso, foram importantes também para gerar repercussão citando suas experiências pessoais com as das suas respectivas personagens, foi possível notar que a novela efetivou o seu discurso.
De acordo com Lucas, que também é roteirista e dramaturgo, o ator Rui Rezende estava - como está hoje - com muita vontade de voltar a trabalhar na TV, pouco tempo depois foi chamado para integrar o elenco da novela. Ele acredita que o convite para a novela acabou acontecendo por conta disso.
Ele conta que ainda antes da pandemia, alguém enviou uma mensagem para o e-mail coletivo da Associação Brasileira de Autores Roteiristas (ABRA), da qual ele participa dizendo que o veterano estava à procura de trabalho e, um tempo depois ficou sabido que ele estava no elenco de Um Lugar ao Sol.
“Acho interessante porque é a novela operando na prática o que ela prega no discurso”, comenta Lucas.
A terceira idade ganhou destaque na teledramaturgia em 2015, quando a TV Globo exibiu a série Os Experientes, que abordou o envelhecimento, assim como as pessoas idosas se redescobrindo e vivendo dignamente como a melhor fase da sua vida.
Cobertura jornalística da pauta na novela
Durante todo o período de exibição da novela Um Lugar ao Sol, entre novembro de 2021 a março de 2022, foram inúmeras matérias sobre a personagem Rebeca (Andrea Beltrão) ou Noca (Marieta Severo), mas poucas, de fato, sobre o etarismo, citando o termo e abordando a sua definição, assim como as formas pelas quais ele está presente em nossa sociedade.
Embora saiba-se que a editoria cultural não seja acostumada a se aprofundar no tema, poucas reportagens se destacaram nesse quesito. Uma delas é “O que é etarismo? Realidade e ficção na TV escancaram rejeição por idade”, publicada em 10 de novembro de 2021 - dois dias após a estreia de Um Lugar ao Sol pelo site Notícias da TV.
Essa reportagem, além de cumprir o dever de agendar temas de interesse do público, não se limitou a isso, abordando de maneira mais aprofundada e incomum a esse tipo de segmento a temática do etarismo na novela. Ela contém, além de informações sobre a novela, falas da atriz Marieta Severo, assim como explica o conceito do termo e traz entrevistas com especialistas que complementam a reportagem.
Por isso, procuramos a jornalista e editora-chefe Odara Gallo, responsável pela reportagem para entender seu processo de criação. A jornalista conta que, para a cobertura de uma novela, ainda mais das nove - produto que costuma ser o de maior audiência da TV - os assuntos mais relevantes são levados em conta.
“Primeiramente, no jornalismo hoje e sempre, a gente tem a questão da relevância, de como aquele assunto pode ser relevante para as pessoas, para o leitor. E no caso de uma novela das nove, é mais fácil de você ver relevância por ser normalmente o produto da TV que tem maior audiência, ou seja, mais pessoas assistindo, de certo modo tudo que é abordado naquele produto de mídia você pode considerar que têm relevância”, diz Odara Gallo.
Odara ainda explica que o destaque desta reportagem não é mero detalhe. O site contém um canal chamado Atitude, em que aborda temas de maior relevância social levantados em programas televisivos, como novelas e reality shows. Assim como outras pautas sociais abordadas na novela, como a gordofobia, homossexualidade e a violência doméstica, também houve pautas aprofundadas no Notícias da TV.
"Além do conteúdo cultural e da dramaturgia, a ideia da pauta foi minha, mas a ideia da criação do canal Atitude também foi minha. Criamos esse canal exatamente para poder abordar questões de forma mais aprofundada. É nele que usamos como um gancho um assunto abordado em uma novela, série ou mesmo levantado em um reality show para se aprofundar, ouvir profissionais, como médicos e tudo mais. A ideia foi criar esse canal para abranger esses outros assuntos e não ficar destoando dos outros mais pautados na novela", explica.
Outra reportagem do mesmo veículo que se destacou foi “Um Lugar ao Sol: Rebeca faz as pazes com idade e dá banana para machismo”, publicada em 22 de março de 2022. Essa reportagem apresentou apenas a cobertura da cena da novela, mas chamou a atenção por detalhar o discurso da personagem, bem positivo.
O conteúdo das duas reportagens mostrou-se bem completo, o que pode fazer com que os leitores compreendam e se interessem pela pauta. Ambas utilizam uma narrativa em que começam explicando o tema e, mais a fundo, a abordagem dele na novela.
Foi possível perceber que, além dos conteúdos selecionados por esta pesquisa, a maioria das repercussões sobre a abordagem do etarismo, assim como, especificamente, das cenas da novela, aconteceu nos veículos do Grupo Globo, como o Gshow.
Essas matérias desempenhavam o papel de cobertura de entretenimento, sem qualquer aprofundamento social que envolvesse outra editoria, exceção ao programa Fantástico, com reportagem denominada “Isso tem nome: entenda o que é o etarismo, a discriminação por idade", que exibiu discussão semanas antes da novela Um Lugar ao Sol estrear. Isso, claro, aproveitando que o assunto começava a percorrer a mídia.
Mesmo assim, não há entrevistas, depoimentos e casos reais, bem como a inclusão de outros grupos, como os homens, que também estão sujeitos a esse tipo de preconceito, embora sejam menos atingidos do que o público feminino, devido às convenções machistas.
Repercussão nas redes sociais
Durante a cena do manifesto protagonizada por Rebeca (Andrea Beltrão), exibida no capítulo 116, que foi ao ar em 22 de março de 2022, em que a personagem cita o etarismo e, além de explicá-lo, fez uma reflexão sobre o assunto, fez com que as redes sociais o tornassem um dos temas mais comentados da novela.
Os comentários, além de comemorar a evolução da personagem, foram de aprovação da abordagem da pauta social, assim como elogios à atriz, que também é bastante engajada na causa em suas redes sociais e em outras entrevistas que já concedeu.
Um Lugar ao Sol foi uma novela problemática em vários quesitos e, mesmo assim, com baixa audiência, era um dos assuntos mais comentados nas redes sociais.
Pesquisas sobre o termo "etarismo"
Dados do Google Trends mostram que, durante o período em que a novela Um Lugar ao Sol esteve no ar, entre 8 de novembro de 2021 a 25 de março de 2022, o termo etarismo teve picos de pesquisa na plataforma. O que é possível explicar devido às matérias - como as citadas na reportagem - que fazem a cobertura primária sobre a abordagem da novela.
Os melhores resultados ocorreram no dia seguinte à estreia: o termo teve 44 buscas, movimento repetido ao longo do mês, atingindo 46 pesquisas em 20/11/2021 e, novamente, 44, em 29/11/2021. Coincidentemente, em 04/12/2021, no dia seguinte em que uma cena de Rebeca (Andrea Beltrão) discute com sua filha Cecília, ambas trocam frases etaristas, retratando que o preconceito acaba estando nos dois lados. Neste dia, o pico foi de 72 pesquisas na web do Google.
No mesmo período, o gráfico mostra que o volume de pesquisas de notícias sobre o etarismo mostrou-se movimentado no primeiro mês da novela, com picos de 64 pesquisas em 11/11/2021 e de 100 pesquisas em 10/12/2021. As estatísticas só voltaram a crescer de maneira mais significativa com 88 pesquisas.
Etarismo na vida real
Se você chegou até aqui e se identificou com algum exemplo abordado em alguma telenovela apresentada nesta reportagem, é hora de perceber que o problema é mais comum do que se imagina e você pode até mesmo refletir melhor, seja você o público alvo do etarismo ou quem o pratica.
Para isso, a reportagem criou uma pesquisa com a finalidade de entender melhor como o preconceito por idade atinge de fato as pessoas.
Para essa pergunta, foram consideradas pessoas acima de 40 anos, levando em consideração que é a faixa etária em que o etarismo começa a surgir. É interessante analisar que a maior parte dos participantes da pesquisa tinham menos de 40 anos, assim como a faixa etária entre os 40 e 45, constatando o que já é conhecido. Além disso, o público entre 50 a 55 anos também obteve uma participação significativa na pesquisa.
Os dados apresentados pelo gráfico acima reforçam que o etarismo hoje em dia não está limitado apenas a pessoas idosas e pode, sim, ser visto e sentido já mesmo antes dos 40 anos, o que é bastante evidente. Ele segue apenas o envelhecimento da população que vem aumentando.
Quando se olha para os gêneros, fica claro o que foi afirmado anteriormente: mulheres seguem sendo as mais atingidas pelo etarismo, acumulando 72,2% dos participantes que responderam à pesquisa, contra 27,4% dos homens.
O resultado é um reflexo de um quadro já conhecido. As mulheres são mais propícias a sofrerem o preconceito por idade, devido a questões biológicas, sociais e também razões históricas, sendo menosprezadas, desqualificadas e até descartadas por não serem mais úteis, belas ou mesmo jovens.
Com os homens, acontece o inverso. O envelhecimento masculino é tido como algo positivo, admirável e sempre visto como um elogio. São considerados sinônimos de sabedoria, experiência e maturidade bem vistos pela sociedade.
Assim como o gráfico acima, os ambientes em que a discriminação por idade foi sentida pelos participantes da pesquisa foram em primeiro lugar no trabalho (71,2%), na família (61%) em seguida da internet (35,6) e no ambiente acadêmico/escolar, somando 32,2% das respostas.
Destacamos que no mercado de trabalho talvez seja o mais perceptível. Hoje em dia, ao se abrir o LinkedIn - uma rede social voltada para o mercado de trabalho - é possível ver inúmeras publicações com profissionais de diferentes idades deixando seus relatos de dificuldades para uma recolocação no mercado, além de sofrerem ações discriminatórias, como mostraremos adiante nesta reportagem.
Uma pesquisa inédita e recente mostra que o etarismo está atingindo pessoas na faixa etária dos 30 anos. É isso mesmo. Está cada vez mais difícil ser um profissional maduro no mercado de trabalho. O levantamento feito pelo site de recrutamento Vagas.com mostra que, do total de profissionais que sofreram algum tipo de discriminação no ambiente de trabalho em função de sua idade, 24% possuem entre 30 e 39 anos. Ou seja, cada vez mais pessoas estão sofrendo etarismo e ainda mais cedo.
Ainda segundo a pesquisa, o maior público-alvo segue sendo os trabalhos da faixa entre os 40 e 49 anos, que somam 56% dos entrevistados. Em seguida, têm entre 50 e 59 anos, acumulando 18% e os maiores de 60 anos, com apenas 2%.
Também foi perguntado aos usuários da plataforma se eles haviam testemunhado algum caso de etarismo com pessoas próximas e o resultado foi interessante. 42% responderam que sim, 33% disseram que nunca presenciaram e 25% declararam já ter ouvido relato de pessoas próximas sobre o assunto.
A pesquisa "Etarismo" foi realizada em agosto deste ano por meio da plataforma de seleção Vagas.com, com a participação de 6,2 mil candidatos que utilizam as soluções oferecidas pelo grupo Vagas For Business e Talento Sênior.
Nessa mesma linha de abordagem, a reportagem entrevistou dois personagens que foram discriminados pela sua idade, em um dos setores da sociedade onde ele é mais evidente: o mercado de trabalho.
Carla Zucas, de 55 anos, conta que foi vítima de etarismo ao se candidatar para uma vaga de instrumentador cirúrgico de uma empresa renomada no ramo da saúde. Depois de tudo certo para seu início, recebe a mensagem que a contratação foi barrada pelo departamento jurídico da empresa, e sua idade foi usada como pretexto.
O caso tomou grande proporção ao ser publicado pela sua filha Priscila Zucas, que compartilhou o caso de sua mãe no seu perfil no LinkedIn. Ela relatou o ocorrido e questionou o motivo de ainda haver tanto preconceito com pessoas maiores de 50 anos. A publicação conta com mais de 400 reações, centenas de comentários e compartilhamentos.
Ouça o depoimento de Carla:
O etarismo também atinge os homens, embora de maneira diferente. Exemplo curioso aconteceu com uma pessoa com menos de 40 anos, ou seja, cada vez está mais presente na vida da população.
Klayton Crul Corrêa, de 37 anos, que está terminando a sua terceira graduação, expôs no seu perfil do LinkedIn que foi vítima de etarismo em um processo seletivo para vaga de emprego.
No texto que acompanha a imagem ao lado, Klayton desabafa sobre a experiência:
“Nunca esperei receber um feedback assim, após 8 etapas de um processo seletivo depois de passar por dinâmica de grupo, entrevistas, prova de inglês, raciocínio lógico e ter entregado prova técnica e relatório em 2 idiomas, receber um feedback como esse é realmente um banho de água fria em qualquer candidato”, relatou.
“Se a empresa tem restrição quanto a faixa etária podiam ao menos ter me reprovado no início do processo não ter me enrolando por mais de 1 mês. Somente na prova técnica foram 3 dias de análise e criação de relatório e depois a entrevista técnica explicando minhas análises e como cheguei nos resultados para receber um feedback que SOU VELHO DEMAIS PARA A EMPRESA, pois tenho mais de 30 anos".
Em entrevista, Klayton relata como se sentiu ao receber esse tipo de negativa do RH da empresa. Ele explica como foi o processo até chegar nessa resposta e também revela que a publicação o ajudou a se recolocar no mercado, onde sua idade não foi um impedimento. Atualmente Klayton é Data Analyst BI.
Ouça o depoimento de Klayton: