Em 1º de outubro de 2001, primeiro ano do século XXI, a Rede Globo estreou uma das novelas mais impactantes e bem-sucedidas de sua história: “O Clone”. Reconhecida por sua criatividade, ambição e interesse em retratar culturas e conflitos humanos nunca explorados antes, a autora Glória Perez contava a história do amor proibido entre dois jovens muito diferentes: Jade (Giovanna Antonelli), muçulmana rebelde que sonhava em se livrar das doutrinas de sua religião e ser dona de seu próprio destino, e Lucas (Murilo Benício), um brasileiro sonhador e pouco prático, que se torna uma pessoa infeliz ao “assumir”, de certa forma, o lugar de seu falecido irmão gêmeo, Diogo, que sempre o ofuscou. Mas isso é só a superfície: “O Clone” é muito mais do que isso. E a gente ainda nem começou a falar do clone em si.
Sempre à frente de seu tempo, Glória já tratou de temas inéditos em seus trabalhos anteriores, falando sobre as implicações e desdobramentos emocionais das barrigas de aluguel (“Barriga de Aluguel” – 1990), transplante de órgãos (“De Corpo e Alma” – 1992) e o advento da internet (“Explode Coração” – 1995) quando ninguém nem pensava em falar sobre isso. Mas nada se compara à “O Clone”, seu trabalho mais grandioso e ambicioso até então. Talvez essa seja, de fato, a novela mais ambiciosa de toda teledramaturgia brasileira, sendo considerada “maluca” por muitos atores e diretores que não aceitaram o convite para participar de sua produção. Mas a espera valeu a pena: Glória encontrou seu parceiro perfeito em Jayme Monjardim, diretor artístico que imprimiu sua visão cinematográfica ao texto da autora. Consagrado por seu trabalho em novelas como “Pantanal” (1990, na extinta Rede Manchete), Monjardim transformou as paisagens do Marrocos, do Egito e até mesmo do Rio de Janeiro em verdadeiras obras de arte. Outros detalhes, como a sonoplastia e a trilha sonora cuidadosamente selecionada, dão à novela uma sensação arrepiante.
“O Clone” deu o azar de estrear quase um mês após o ataque à Torres Gêmeas em Nova York, causando uma certa resistência do público à cultura muçulmana retratada pela novela. Mas a abordagem humana e os personagens cativantes de Glória conquistaram o público, ajudando a dissolver qualquer preconceito existente contra essa comunidade tão interessante, com costumes tão diferentes e quase opostos aos nossos, além de apresentar ao Brasil os belos ensinamentos do livro sagrado Alcorão.
Mas a verdadeira ambição de Glória estava em outra trama: inspirada pelos experimentos feitos com a ovelha Dolly por cientistas escoceses em 1997, a autora criou a trama do Dr. Albieri (Juca de Oliveira), cientista que infringe a ética médica ao clonar seu afilhado, Lucas. A humilde dançarina de salão Deusa (Adriana Lessa), que sonha em ser mãe, não faz a menor ideia de que foi usada como cobaia dessa experiência arriscada, dando à luz ao problemático Léo, o clone que dá nome à novela e, indiretamente, reciclando a temática das barrigas de aluguel. A personagem e a atuação dedicada de Adriana Lessa passaram quase despercebidas na exibição original, mas a cada nova reprise, cresce a sensação de que Deusa foi a protagonista moral da novela. Mãe, negra, sofredora, de classe baixa, casada com um homem infiel, ela sofre inúmeras indignidades por ser “a mãe do clone”. Por ser a mãe negra de um menino branco, é confundida com a babá dele; grande vítima de Albieri, Deusa sofre com a aproximação dele com seu filho, ambos invalidando seu papel de mãe. Recentemente, com a última reprise da novela no Canal VIVA, Deusa ganhou mais visibilidade, virando pauta de inúmeros vídeos no YouTube.
Uma das marcas da autora é a sua extensa gama de personagens, sempre muito diversos, para todos os gostos, e totalmente memoráveis. De um lado, temos os personagens trágicos: a dependência química foi tratada com muita sensibilidade e responsabilidade social através dos personagens Mel (Débora Falabella), Nando (Thiago Fragoso) e Lobato (Osmar Prado). Os dois primeiros, adolescentes, entram pro mundo das drogas para fugir dos problemas familiares. Suas mães, Maysa (Daniela Escobar) e Clarisse (Cissa Guimarães), respectivamente, lutam sozinhas para salvar seus filhos, enquanto são negligenciadas e traídas por seus maridos. Os depoimentos de Lobato, alcoólatra há muitas décadas, e também de pessoas reais, faziam um contraponto muito bem pensado às primeiras experiências desses jovens com as drogas. Pela abordagem do assunto, a novela recebeu homenagens e prêmios no Brasil e no mundo, além de elogios do então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso.
Do outro, a comédia explicitamente popular, representada pelos personagens que viviam no bairro São Cristóvão, com direito à bordões que continuam na boca do povo até hoje. Dona Jura (Solange Couto) comandava seu bar, seus funcionários, seu filho e seu namorado com muita firmeza, e também muito bom humor – “né brinquedo, não!”; Odete (a saudosa Mara Manzan) tinha mania de grandeza e sempre batia ponto no Piscinão de Ramos, onde “cada mergulho é um flash!”. Entre os personagens muçulmanos, é impossível não se compadecer com o sofrimento (ainda que cômico) da solteirona Nazira (Eliane Giardini), que vivia pelos irmãos e cunhadas, sem nunca encontrar seu próprio amor. Hoje com 30 anos de idade, a atriz Carla Diaz ainda é lembrada por sua Khadija, e seu bordão “inshalá, muito ouro!”
Com a ajuda de uma direção competente e um elenco muito inspirado, Glória fez o impossível nessa novela: uniu temas complexos, merchandising social e comédia com muita coesão, e sem uma equipe de roteiristas colaboradores. É verdade que a autora se resvalava demais no didatismo em alguns momentos, mas esse é o preço que se paga ao contar uma história tão complicada num produto tão popular quanto uma telenovela. Até no figurino a novela fez sucesso: o anel-pulseira que Jade usava virou uma febre nos camelôs de todo o país. “O Clone” merece todos os elogios, fica até batido. Mas como toda obra aberta, nem tudo dá certo. Primeiro: em retrospecto, a novela é considerada muito arrastada. Exibida em 221 capítulos, teve muitas “barrigas” – seus acontecimentos demoravam muito para se desenrolar, especialmente no que dizia respeito ao casal Jade e Lucas, que passam a novela toda tentando ficar juntos, e só conseguem no último capítulo. Cansa, né?
Segundo: a representação de personagens negros. Além da já citada Deusa, que sofria o pão que o diabo amassou, existia Dalva (Neuza Borges), que dedicou a vida à família de Leônidas Ferraz (Reginaldo Faria), sendo que quase uma escrava, numa época em que personagens negros em posições de subalternidade era algo normalizado na sociedade e nas novelas. Um ponto positivo em relação a isso foi ver Thalma de Freitas vivendo uma advogada, Carol, uma vez que no ano anterior ela viveu a empregada doméstica Zilda em “Laços de Família” (2000), que assim como Dalva, vivia em função dos patrões, sem nenhuma vida própria. É interessante perceber como certos estereótipos foram desconstruídos ao longo das décadas, mesmo que ainda haja muito a ser feito.
A novela se consolidou com um dos maiores sucessos da teledramaturgia brasileira, atingindo ótimos números de audiência que só faziam crescer durante a exibição. Hoje, “O Clone” ocupa o 5º lugar no ranking de novelas mais exportadas pelo mundo, sendo vendida para 104 países. Sua primeira reprise foi no “Vale a Pena Ver de Novo” em 2011, ao completar 9 anos de sua exibição original; a segunda reprise foi no Canal VIVA, entre dezembro de 2019 e agosto de 2020, se tornando uma das maiores audiências da história do canal. Em comemoração aos seus 20 anos, “O Clone” está sendo reprisada novamente no “Vale a Pena Ver de Novo”, substituindo o remake de “Ti Ti Ti” (2010).