O ano de 2020 foi realmente surpreendente em todos os sentidos e, na teledramaturgia não poderia ser diferente. Em meio a uma pandemia que paralisou as gravações das novelas exibidas neste período, a TV Globo recorreu a reprises em todas as duas faixas. No horário das 19h, “Totalmente Demais” voltava ao ar em março numa edição especial, sendo substituída em outubro por “Haja Coração” – as duas novelas também foram exibidas em sequência quando foram ao ar originalmente, em 2016.
Em teoria, “Haja Coração” é um remake de “Sassaricando”, novela escrita por Silvio de Abreu em 1987, adaptada livremente por seu pupilo Daniel Ortiz, principal colaborador em suas últimas novelas e sua aposta como autor independente (a novela das 19h interrompida pela pandemia, “Salve-se Quem Puder”, também é de autoria de Ortiz).
É um grande desafio adaptar, para os dias de hoje, a essência frenética das novelas dos anos 80. Por coincidência – ou não – “Haja Coração” e “Sassaricando” foram ao ar simultaneamente, sendo a última reprisada pelo canal a cabo Viva. As comparações foram inevitáveis, e nesse texto vamos comentar sobre isso.
Título e abertura
A principal mudança de uma novela para outra foi o nome, de “Sassaricando” para “Haja Coração”, sinalizando uma mudança de foco generalizada da novela. Sai de foco a chanchada e o humor escrachado (simbolizado nos “sassaricos” de Aparício Varella e as mulheres com quem se envolve, além das fantasias sexuais do casal Fedora e Leonardo e a absurda trama policial), e quem ganha o protagonismo, dessa vez, é o triângulo amoroso Tancinha-Beto-Apolo, coadjuvantes na novela original, tornando a adaptação uma comédia romântica água-com açúcar. Isso se reflete também nas aberturas: enquanto a sugestiva e elegante abertura de “Sassaricando” mostra os movimentos dos atores embaixo de um lençol de cetim, ao som da marchinha de carnaval homônima de Virgínia Lane na voz de Rita Lee, a abertura de “Haja Coração” é uma explosão poluída de objetos, movimentos e cores com pouco conceito, embalada pela música “O Farol”, de Ivete Sangalo, que fala de maneira genérica sobre amor e faz referências à fantasias sexuais, tema curiosamente reprimido na nova versão da novela.
A família de Tancinha
A família de feirantes sofreu muitas modificações. Antes, uma família híspano-italiana, os Gutierrez de Pádua, se tornaram nos inteiramente italianos Rigoni di Marino. A matriarca Aldonza (Lolita Rodrigues), espanhola de sotaque muito forte, virou Francesca (Marisa Orth), italiana sem sotaque algum. Ricardo de Pádua (Carlos Zara), o marido que sumiu no mundo, se transformou em Guido (Werner Schunemann), que também desapareceu, mas por razões muito diferentes. Dos quatro filhos, Tancinha foi a única que manteve seu nome nas duas versões, sendo vivida por Cláudia Raia em “Sassaricando” e por Mariana Ximenes em “Haja Coração” – a personalidade ingênua dela foi mais difícil de engolir em 2016. No original, Tancinha era a coadjuvante que roubou a cena; no remake, a protagonista que ficou ofuscada.
Enquanto Guel (Edson Celulari) era um detetive da Interpol disfarçado, Giovanni (Jayme Matarazzo) queria provar sua inocência após ser injustamente preso. Isabel (Angelina Muniz) era tão ardilosa quanto sua versão de 2016, Carmela (Chandelly Braz). Já a filha mais nova do casal foi a mudança mais drástica: Juana (Denise Milfont) virou Shirley (Sabrina Petráglia), adaptação de uma personagem de outra novela de Silvio de Abreu, “Torre de Babel”, de 1998, onde foi vivida por Karina Barum. Uma cinderela moderna, Shirley foi, em “Haja Coração”, o que Tancinha foi em “Sassaricando”: a personagem secundária que roubou a novela para si.
A família Abdala Varella
O “núcleo rico” da novela também sofreu alterações. Em “Sassaricando”, a empresa da família era uma tecelagem; em “Haja Coração”, é o Grand Bazaar, complexo cultural e gastronômico, ponto de encontro dos personagens. Em sua versão original, Aparício era o protagonista, vivido por Paulo Autran, fingindo ser três pessoas diferentes para se envolver com três mulheres diferentes: Rebeca (Tônia Carrero), Penélope (Eva Wilma) e Leonora (Irene Ravache).
Na nova versão, o personagem passou por modificações devido ao seu novo intérprete, Alexandre Borges, que viveu um personagem muito parecido poucos anos antes: Cadinho, em “Avenida Brasil”, de 2012. Afim de evitar comparações, ele apenas se envolvia com Rebeca, agora vivida por Malu Mader, e praticamente não contracenava com Penélope, vivida por Carolina Ferraz, que viveu uma das mulheres de Cadinho.
o original, a filha de Aparício, Fedora (Cristina Pereira) e seu namorado, o golpista Leonardo (Diogo Vilela) tinham um relacionamento tórrido, cheio de fantasias sexuais. Na nova versão, interpretados por Tatá Werneck e Gabriel Godoy, os personagens eram bem mais comportados. Em “Sassaricando”, Aparício era casado com Teodora (Jandira Martini), e ela tinha duas irmãs, Lucrécia (Maria Alice Vergueiro) e Fabíola (Ileana Kwasinsky). Em “Haja Coração”, as irmãs eram apenas duas, Teodora e Lucrécia (Grace Gianoukas e Claudia Jimenez).
Personagens que existem em uma versão, mas não na outra
É comum, em remakes, que alguns personagens deixem de existir e outros sejam criados para a nova versão. Além da já citada Fabíola, seu filho Tavinho (Alexandre Lipiani) também não está presente em “Haja Coração”, bem como a entidade “Ela”, encabeçada por Bóris Aidan (Lourival Pariz) – na nova versão, a função vilanesca de Aidan foi remanejada para Agilson (Marcelo Médici), irmão de Aparício.
Para a novela de Daniel Ortiz, muitos outros personagens foram criados: todo o núcleo de Felipe (Marcos Pitombo) e Vitória (Betty Gofman); a filha mais nova de Penélope, Tamara (Cleo Pires); a prima de Teodora e Lucrécia, Safira (Cristina Pereira); a advogada do mal Bruna (Fernanda Vasconcellos); a mãe de Apolo (Malvino Salvador) e Adonis (José Loreto), Nair (Ana Carbatti), o núcleo das crianças órfãs que Tancinha e Beto (João Baldasserini) tentam adotar, entre outros.
Mesmo que sejam basicamente a mesma história, “Sassaricando” e “Haja Coração” são completamente diferentes. A primeira teve texto afiado, inteligente, cheio de boas referências, que valorizava seu elenco maduro e tinha a participações de artistas de grande valor para a história da TV e do teatro, como Maria Alice Vergueiro e Jorge Lafond. A segunda pecou pelo texto raso, diálogos infantis e direção sem personalidade, que descaracterizou a essência da novela original. Ao invés dos atores experientes, focou em seu elenco jovem e em escalações equivocadas, o que resultou em atuações pouco inspiradas e grandes atores desperdiçados.
Mesmo que tenha feito relativo sucesso em sua exibição original, o público teve a chance de reavaliar “Haja Coração”, como aconteceu com todas as novelas reexibidas durante a pandemia. Há quem goste da novela por ela ser leve e despretensiosa (ainda mais em tempos de pandemia onde as novelas também se tornaram um refúgio para o público), mas está longe de ser uma das melhores novelas da década passada, como foi sua versão original no final dos anos 80.
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