Além de serem o produto audiovisual mais consumido e exportado pelo Brasil, as novelas também são verdadeiros documentos históricos. Ao longo de seus 70 anos de vida, elas acompanharam vários períodos da história do Brasil. Em seu auge, com o surgimento do teleprompter, da TV à cores e outras tecnologias, a novela brasileira foi muito atingida pela censura da Ditadura Militar. Mesmo com o fim da Ditadura em 1985, foi só no final dos anos 80 que as novelas ficaram livres de verdade da censura imposta por este período terrível do país. A partir de então, críticas políticas e comportamentais se tornaram mais frequentes e explícitas em seus enredos.
E não falamos apenas de novelas explicitamente políticas, como por exemplo as obras do autor Dias Gomes – “O Bem-Amado”, de 1973, era protagonizada por um prefeito corrupto e populista com fixação pela morte de seus munícipes (lembra alguém?), enquanto “Roque Santeiro” era a adaptação de uma peça censurada do autor que, na tentativa de enganar os censores, teve sua primeira versão barrada pela censura minutos antes de ir ao ar, em 1975 (a versão definitiva da novela, um marco da TV brasileira, só pôde ser produzida dez anos depois). Falamos também de novelas de humor, que discutem temas sociais ao mesmo tempo que fazem rir.
Falamos também de novelas de humor, que discutem temas sociais ao mesmo tempo que fazem rir. Em 1987, o rei das 19h Cassiano Gabus Mendes propôs uma discussão bem-humorada sobre classes sociais em “Brega & Chique”, reapresentada recentemente pelo Canal VIVA. Casadas com o mesmo homem, a rica e esnobe Rafaela Alvaray (Marília Pêra) e a suburbana Rosemere (Glória Menezes) trocam de posição quando ficam viúvas, e só a segunda recebe a herança do marido. Além das diferenças socioeconômicas, a novela também discutia machismo, empoderamento feminino e valores morais. Mas a maior transgressão foi sua abertura, onde um homem nu surgia no final, provocando o falso moralismo da censura e de parte do público. A abertura sofreu várias alterações ao longo da novela, até desistirem de censurá-la
Como já citado antes, o final da década finalmente trouxe uma maior liberdade aos autores, e duas novelas são os maiores exemplos disso: “Vale Tudo” (1988) e “O Salvador da Pátria” (1989), ambas constantemente comparadas com a atual realidade brasileira. A primeira é, talvez, a novela mais atemporal que já foi escrita – e considerada por muitos a melhor de toda a história da TV, opinião confirmada pela nova legião de fãs que conquistou após ser disponibilizada no Globoplay. Os autores Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères exploraram a inversão de valores e as diferenças socioeconômicas de um Brasil ainda desacostumado à democracia.
As três personagens femininas centrais exemplificam as ideias discutidas pela novela: a honesta e batalhadora Raquel (Regina Duarte) representava o conceito da meritocracia, começando a novela vendendo sanduíches na praia, crescendo gradualmente até se tornar a bem-sucedida dona de uma rede de restaurantes; sua filha, a gananciosa Maria de Fátima (Glória Pires), é revoltada por ter crescido pobre e passa por cima de qualquer pessoa, até da própria mãe, para alcançar uma vida de dinheiro e luxo; e por fim Odete Roitman (Beatriz Segall), um retrato da elite excludente brasileira: milionária, classista e preconceituosa, ela odeia tanto o Brasil que, através de um pacto com Fátima, faz com que ela se case com seu filho apenas para fazê-lo ir morar na Europa. Ainda que obviamente datada em certos aspectos, muitas questões apresentadas na novela são relevantes até hoje.
Exibida logo na sequência de “Vale Tudo”, “O Salvador da Pátria” foi uma novela de forte e explícito cunho político. O autor Lauro César Muniz contava a complexa história da improvável ascensão social de Sassá Mutema (Lima Duarte), um boia-fria analfabeto, simples, que acaba se tornando um prefeito de alta popularidade. Reprisada atualmente pelo VIVA, a novela foi muito associada – e criticada – durante sua exibição original por contar uma história muito parecida com o ex-presidente Lula, à época, candidato nas primeiras eleições diretas no Brasil em 29 anos.
A Globo e o autor desmentem qualquer inspiração e apologia à Lula. A novela retratava todo panorama político, suas articulações e a velha guerra de extremismos entre esquerda e direita, representada aqui pelo radialista Juca Pirama (Luís Gustavo, numa participação marcante), sensacionalista, falso moralista, mas envolvido com uma máfia de narcotraficantes. Princípios morais e éticos eram discutidos com um texto primoroso que poderia ser muito bem escrito hoje em dia.
Vale uma menção honrosa para a novela que veio seguida: “Tieta”, adaptada livremente da obra de Jorge Amado, mostrava o choque cultural entre os moradores de Santana do Agreste, parados do tempo comportamental e tecnologicamente, com a subversiva protagonista vivida por Betty Faria, bem como os personagens que vinham da cidade grande para visitá-la – incluindo uma participação da transformista Rogéria. Foram explorados temas, como moral e bons costumes, machismo, fanatismo religioso, homofobia e até mesmo o erotismo, que era fortemente presente na novela – claro, com muito humor e com boas críticas sociais.
Devemos reconhecer que é interessante perceber reflexos da nossa sociedade atual em novelas de 30 anos atrás. Mas isso desperta questionamentos desconfortáveis. Por quê essas novelas continuam tão atuais? Por mais que o tempo passe e que sim, as coisas mudem bastante, por quê a desigualdade social e a indiferença da classe política permanecem as mesmas no Brasil? O que é necessário para que a gente olhe pra trás e possa finalmente dizer que esses problemas não existem mais?