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Foto do escritorGeovanne Solamini

O imensurável legado de Gilberto Braga para a teledramaturgia brasileira


Foto: Memória Globo

Em 26 de Outubro de 2021, a TV brasileira sofre uma perda irreparável. Gilberto Braga, um dos maiores – senão o maior – autores de telenovelas do nosso país, falece aos 75 anos de idade, vítima de uma infecção generalizada, desencadeada por uma perfuração no esôfago que o manteve internado por quase uma semana.


Gilberto colecionava sucessos na televisão, retratando com ninguém a sociedade brasileira, desde a hipocrisia e podridão da elite, até as reivindicações e injustiças sofridas pelas classes mais baixas, sempre retratando o que há de pior por trás das aparências e colocando em pauta debates sociais, discussões de valores morais. As perspicácias do autor eram exemplificadas por seus vilões, pérfidos e sem escrúpulos, mas cheios de humanidade, que conquistaram o público e entraram para a história, servindo de inspiração até para autores da mesma geração, como Aguinaldo Silva, por exemplo.


Formado em Letras, Gilberto nunca saiu da TV Globo, onde começou sua carreira com apenas 27 anos de idade, assinando adaptações de livros clássicos para o seriado “Caso Especial”, em 1973, e também para algumas novelas do horário das 18h. Impressionado por seu talento, o diretor Daniel Filho o tornou colaborador dos autores Lauro César Muniz e Janete Clair. Em 1976, ele escreve seu primeiro grande sucesso: “Escrava Isaura”, adaptação da obra de Bernardo Guimarães que se tornou um fenômeno em todo o mundo. Em seguida vieram dezenas de novelas absolutamente icônicas, entre elas “Dancin’ Days” (1978), “Água Viva” (1980) – a primeira novela em que Gilberto usou o “quem matou?”, uma de suas marcas registradas –, “Corpo a Corpo” (1984) – esta, considerada por ele seu melhor trabalho como autor. Destaca-se também a minissérie “Anos Dourados” (1986).


Mas um sucesso ainda maior viria pela frente. Inspirado por uma discussão familiar, onde um padrinho, delegado de polícia, foi acusado de ser um “babaca” por não ter se corrompido, Gilberto criou “Vale Tudo” (1988), considerada a melhor novela brasileira de todos os tempos. Discutindo se valia a pena ser honesto no Brasil, a novela tinha personagens muito carismáticos, icônicos: Raquel (Regina Duarte), a mulher batalhadora que sofre um golpe da própria filha, a gananciosa Maria de Fátima (Glória Pires); a alcoólatra Heleninha (Renata Sorrah); mas principalmente Odete Roitman, a inesquecível vilã vivida por Beatriz Segall, que marcou eternamente sua carreira. Retrato da elite brasileira decadente, a personagem tinha horror ao Brasil, era obcecada pela Europa, e dominava a vida de todos à sua volta. No capítulo 193, exibido na véspera do natal de 1988, ela é misteriosamente assassinada, o que resultou na pergunta “quem matou Odete Roitman?”, sendo usada até em publicidades e movimentando bolões por todo o país. A resposta só foi revelada no último capítulo, num final gravado horas antes de ir ao ar.


Ao longo das décadas seguintes, as obras de Gilberto tiveram variados níveis de sucesso. “O Dono do Mundo” (1991) e “Pátria Minha” (1994) pretendiam, assim como “Vale Tudo”, discutir a ética e a moral do brasileiro, mas não causaram o mesmo impacto. A minissérie “Anos Rebeldes” (1992) retratou de maneira emocionante e impactante os horrores do período da Ditadura Militar. “Celebridade” (2003) apresentou mais uma de suas grandes vilãs: Laura Prudente da Costa (Cláudia Abreu) personagem complexa que ganhava a confiança de Maria Clara Diniz (Malu Mader), a quem culpada pela desgraça de sua mãe, pretendendo destruir sua vida em todos os âmbitos. “Paraíso Tropical” (2007) e “Insensato Coração” (2011) seguraram bem a audiência e agradaram a crítica.


Mas seu último trabalho, “Babilônia” (2015), escrito com Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, se mostrou uma despedida muito injusta. Vítima de uma crescente onda de conservadorismo no país, a novela sofreu com a rejeição da crítica e do público, acarretando em inúmeras intervenções internas da TV Globo, que deixaram o autor magoado com a emissora até o fim de sua vida. Mágoa essa que, imaginamos, tenha crescido ainda mais nos meses anteriores ao seu falecimento: Gilberto trabalhava há anos numa adaptação de “Vanity Fair”, romance de William Makepeace Thackeray, para o horário das 18h. Em parceria com Denise Bandeira, o autor já tinha 80 capítulos escritos até que, após sucessivos adiamentos, a novela foi finalmente descartada pela Globo.


A rejeição conservadora não era uma novidade para Gilberto. Homossexual, ele viveu por quase 50 anos com o arquiteto Edgar Moura Brasil, tendo oficializado sua união em 2014, e fazia questão de retratar diversas formas de sexualidade e afeto em suas novelas, da maneira que era possível. O autor foi pioneiro quando, em 1981, desenvolveu a novela “Brilhante” em torno de um personagem homossexual, Inácio (Dennis Carvalho). Ainda que ele não fosse o protagonista da novela, seus dilemas pessoais e familiares tinham grande impacto na sinopse original da história, que foi limada diversas vezes pela censura, que não o autorizava usar o termo “homossexual” e dificultava o desenvolvimento do personagem. Após a redemocratização do Brasil no final da década de 1980, existiu uma maior liberdade para abordar esse assunto, mas ainda assim, com muitas limitações. Em “Vale Tudo”, Cecília (Lala Deheinzelin) e Laís (Cristina Prochaska), eram duas “amigas” que viviam juntas, eram sócias e não poupavam nas demonstrações de carinho. Muitas cenas e diálogos foram censurados até que, na metade da novela, Cecília morre num acidente. Braga já declarou que a morte da personagem estava prevista desde o início da novela, mas há controvérsias: após seu velório, a personagem quase não é mais citada, como se nunca tivesse existido. Personagens gays existiam casualmente em “Paraíso Tropical”, sem intenção de conscientizar o público. Já em “Insensato Coração” e “Babilônia”, a homofobia era discutida abertamente.


Não dá pra falar de Gilberto sem falar de seus colaboradores mais constantes. Atores de diversas gerações foram presenteados com grandes personagens, e demonstram gratidão eterna à Gilberto: Nathália Timberg, Antônio Fagundes, Reginaldo Faria, Hugo Carvana, Fábio Assunção, Cássio Gabus Mendes, Débora Duarte, Deborah Evelyn, além das já citadas Renata Sorrah, Glória Pires, Malu Mader e Cláudia Abreu. E não podemos esquecer do seu diretor, Dennis Carvalho, que foi seu braço direito em quase todos os seus trabalhos na TV.

Perder Gilberto Braga é perder uma parte imensurável da arte brasileira. É perder um texto de qualidade excepcional, é perder uma visão astuta da humanidade, e principalmente do Brasil. É perder vilões inesquecíveis, personagens cativantes, tramas complexas e inteligentes. Gilberto Braga será pra sempre Gilberto Braga, um artista único.


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